Trecho do livro Autonomia 360º (DVS Editora), de Renata Jubram.
A genialidade de talentosos humoristas inspirou a criação do personagem “porteiro Zé” – uma sátira a um tipo de comportamento característico dos muitos porteiros de prédios. Todo mundo, ao menos uma vez na vida, já se deparou com um “porteiro Zé” em uma atuação que poderia ser classificada, no mínimo, como embaraçosa ou surreal.
O “porteiro Zé” ao iniciar em seu novo emprego recebeu a seguinte ordem: jamais abandonar a portaria, em hipótese alguma. Pois aconteceu que um enorme vazamento causou um transtorno à moradora do terceiro andar. Irritada com a situação, ela pede (praticamente exige) que o “porteiro Zé” vá até seu apartamento prestar “serviços de encanador”. De início, ele titubeia, mas acaba cedendo – a moradora fazia parte do conselho administrativo. E o “porteiro Zé” recebe, então, sua primeira advertência. A reclamação foi feita por um grupo de moradores que na tentativa de entrar no prédio, tanto pela garagem, como pela portaria, passa longo tempo esperando sem saber o motivo pelo qual o porteiro “sumiu”.
Alguns dias se passaram até que ocorre um incêndio no oitavo andar. A moradora interfona desesperada. Está ferida e com dificuldade para se locomover. Ao perceber e que não há tempo para chamar o bombeiro – ela pede ajuda ao “porteiro Zé”, solicitando que suba imediatamente ao seu apartamento. E ele então responde: desculpe, mas tenho ordens para não deixar a portaria. ¬A moradora insiste, expondo a gravidade da situação. E o “porteiro Zé” se mantém irredutível: “Desculpe-me, mas ordens são ordens!”
Em todos os lugares as regras são criadas, sempre, por alguma razão (embora essa razão possa ser controversa) e na maioria das vezes seu intuito é promover um bem-estar comum. A regra “não abandonar a portaria” é uma delas. Toda regra também possui um “espírito”. E esse “espírito” é o que justifica e direciona a aplicação da regra. No exemplo dado, cuja regra é “não abandonar a portaria”, seu “espírito” é, principalmente, zelar pela segurança dos moradores.
Quanto ao “porteiro Zé”, ele representa o estereótipo dos que possuem a seguinte característica: interpretar as regras exatamente “ao pé da letra”, sem penetrar no seu “espírito”. O personagem em questão é alguém que não desenvolveu sua autonomia para lidar com eventos inesperados. Ele obedece cegamente às figuras de autoridade (ou que ele julga ter legítima autoridade) quando deveria estar mais ciente de seu papel. Ao mesmo tempo, faz uso literal da regra quando deveria transgredi-la para ajudar alguém que corre perigo – o que, nesse caso, seria absolutamente legítimo. Logo, como visto, seu desempenho é visivelmente caótico.
Autonomia é um termo abrangente e de modo geral significa: governar a si mesmo. Em sua etimologia, autonomia vem do grego autos, que significa “por si só”, mais nomós, que quer dizer “lei” – o que daria o sentido de “obedecer às próprias leis”. Segundo estudiosos do conceito, a autonomia divide-se basicamente em dois campos: o moral e o intelectual. No campo moral, a autonomia se revela na capacidade de questionar e avaliar a legitimidade das regras de conduta vigentes. No caso, é o aspecto que deixou a desejar na atuação do “porteiro Zé”.
O fato, porém, é que os “porteiros Zés” estão também nas universidades, nas ONGs, nas repartições públicas, enfim, em todos os lugares, inclusive nas empresas de qualquer porte. Eles ocupam as mais diversas posições, em todas as escalas da hierarquia, inclusive os cargos de liderança. Obviamente, de acordo com as especificidades desse cargo, as decisões exigidas são extremamente mais complexas, em comparação ao exemplo dado, mas os critérios adotados podem ser igualmente controversos e equivocados, assim como o são para o “porteiro Zé”.
A justificativa para essa afirmação, segundo pesquisa realizada pelo psicólogo norte-americano Lawrence Kohlberg (uma das referências deste livro), é que predomina – em muitos adultos – uma espécie de raciocínio moral infantilizado. Por algum motivo, ao longo do seu processo de desenvolvimento, faltaram estímulos que permitissem a esses indivíduos uma evolução sob o ponto de vista da autonomia.
Por outro lado, é preciso também admitir que lidar com regras e decidir sobre elas com a devida versatilidade, na urgência das situações, não é tarefa fácil para ninguém. E é por essa razão que, de um jeito ou de outro, existe um “porteiro Zé” dentro de cada um nós. E que se manifesta toda vez que aplicamos uma regra literalmente.
O “porteiro Zé”, na verdade, é uma ATITUDE. É uma forma rígida e infantilizada de se relacionar com as regras.
A dificuldade do “porteiro Zé”, portanto, pode ser a dificuldade de qualquer pessoa, independentemente de sua condição social e de seu grau de escolaridade, diferenciando-se apenas no contexto e no grau de complexidade das decisões. Embora nem todos tenham essa consciência.
Enfim, diante do contexto apresentado, vale retomar a pergunta inicial: Pessoas com autonomia fazem a diferença? Para quem estiver disposto a se aprofundar nesse tema faz sentido ler este livro – embora ele não ofereça soluções imediatistas e nem fórmulas prontas. Isso porque atingir maturidade no campo da autonomia envolve um processo de constante aprimoramento pessoal e profissional, que vai sendo construído passo a passo pelo próprio sujeito. Por essa mesma razão, trilhar o caminho da autonomia só será possível para quem, de fato, compreender o seu verdadeiro sentido e legitimar essa possibilidade.